Imagem do Bom Jesus de Matosinhos
UM VELHO E FAMOSO NÁUFRAGO
Joel Cleto e Suzana Faro (texto)
É em Matosinhos que podemos contemplar aquela que
para muitos é a mais antiga imagem de Cristo crucificado existente em
Portugal. Foi no ano 124 que, segundo a lenda, as águas do oceano
depositaram na praia desta localidade uma belíssima imagem de Jesus na cruz
esculpida, poucos anos antes, por Nicodemos, testemunha privilegiada dos
últimos momentos da vida de Cristo.
Objecto de fortíssima devoção desde a Idade Média,
a imagem do Bom Jesus de Matosinhos embora não seja tão antiga quanto insinua a
lenda, não deixa de ser efectivamente, aos olhos dos estudiosos, uma
das mais antigas imagens de Cristo crucificado que se podem contemplar no nosso
país, datando do século XIII.
É uma imagem que só muito raramente sai do interior
da sua igreja, tendo ocorrido em 1944 e 1967 as únicas excepções das últimas
décadas. No entanto, em momentos de particular aflição, deslocou-se até ao Porto
em procissão e grande fervor religioso. Caso de 1526 na sequência de
“apavorantes” calamidades naturais que vinham atingindo a cidade, 1596 e 1644
por ocasião de grandes cheias, ou 1696 por causa de uma “mortífera peste” que
enchia os hospitais e “mergulhara a cidade num imenso pavor”.
Convertido à mensagem de Cristo, Nicodemos foi, segundo a tradição e
apesar de não ser um dos doze discípulos, um dos que de mais perto conviveu com
o Mestre durante os seus últimos dias e instantes, tendo visitado Jesus no
cárcere e assistido à sua crucificação. A Bíblia refere mesmo (S. João 19:
39-40) que foi Nicodemos, com a ajuda de José de Arimateia, que retirou Cristo
da cruz e o depositou no sepulcro, depois de lhe envolver o corpo com ligaduras
de linho, perfumadas de mirra e aloés.
De resto, destes momentos finais da vida de Cristo, José de Arimateia e
Nicodemos guardariam duas preciosas relíquias que seriam perseguidas durante os
séculos seguintes: o Santo Graal (o cálice da Última Ceia) ficou na posse do
primeiro, enquanto o segundo guardou o Santo Sudário, o mais famoso retalho de
tecido da História: aquele ao qual Cristo limpou a sua cara ensanguentada pela
coroa de espinhos e no qual ficou reproduzido o seu rosto.
Profundamente impressionado com os acontecimentos de que fora
testemunha, e porque era bastante dotado para a escultura em madeira, Nicodemos
resolve então, segundo a lenda, esculpir diversas imagens de Cristo crucificado
nas quais, com a ajuda da imagem perpetuada no sudário, reproduz com cuidado as
feições de Jesus.
Estas imagens não permanecerão, no entanto, muito tempo na sua posse.
Isto porque elas eram, afinal, comprometedores indícios face às perseguições de
que os cristãos são então vítimas por parte dos judeus e romanos. Ou então,
noutras versões da lenda, pelo facto dos primeiros cristãos condenarem a
representação e adoração de imagens por verem nelas uma sobrevivência dos
cultos e religiões pagãs. Por um motivo ou por outro, a verdade (lendária, não
nos esqueçamos) é que Nicodemos acaba por lançar as suas imagens ao mar
Mediterrâneo, na longínqua Palestina.
Muitas das imagens perderam-se. Outras, no entanto, flutuando e sulcando
as vagas conseguiram aportar a diferentes destinos, na Síria, em Itália, em
Espanha...
A mais bela e perfeita de todas essas imagens, a que melhor reproduzia a
efígie de Cristo - por sinal a primeira que Nicodemos havia esculpido – depois
de vogado o Mediterrâneo, cruzado o estreito de Gibraltar, sulcado o Atlântico
junto às nossas costas, acabou por ser depositada pelas águas na praia do
Espinheiro, junto ao lugar de Matosinhos. Era o dia 3 de Maio do ano 124.
Domingo do Espírito Santo ou de Pentecostes. Data móvel do calendário religioso
escolhida, de resto, e ainda hoje, para as celebrações, romaria e festas do Senhor
de Matosinhos.
Mas voltemos à lenda. Recolhida a imagem na praia pela população,
constatou-se, contudo, que lhe faltava um dos braços. E em vão se tenta
resolver o problema. Na praia não se encontrou o membro em falta e, por muitos
braços que se tenham mandado fazer aos melhores artífices e carpinteiros,
nenhum encaixava de forma perfeita no ombro amputado ou, pura e simplesmente,
não era similar ao do lado oposto. E assim, resignados, deixam ficar a
imagem resguardada no Mosteiro de Bouças (hoje um lugar da cidade de
Matosinhos no qual, no entanto, ainda se podem observar alguns vestígios do
velho mosteiro e igreja que aí esteve sediada até cerca de 1570 mas cuja
existência, contudo, só está historicamente documentada desde o ano 944). Até
que...
Cinquenta anos depois, no ano 174 (estamos de regresso à lenda, como já
repararam), deambulando pela praia, uma pobre mulher recolhe lenha para
alimentar a lareira. De regresso a casa observa, estupefacta, que um grande
pedaço de madeira teimava em, milagrosamente, saltar do fogo sempre que para
ele era lançado. Milagre reforçado pelo facto de ter sido uma jovem filha a
indicar à mãe que a lenha em questão era o membro ausente na imagem do Senhor
guardado no Mosteiro de Bouças. Facto que em si não encerraria nada de especial
não fosse a circunstância de, até aquele momento, a miúda ter sido surda-muda
de nascença...
E, de facto, rapidamente aplicado no Crucifixo, de imediato se constatou
estar em presença do braço até aí extraviado. E a união ao resto da escultura fez-se
de tal forma que desde aí, apesar de algumas versões da lenda indicarem
tratar-se do esquerdo, nunca mais se conseguiu distinguir qual dos membros da
imagem sofrera as vicissitudes narradas.
Começava desta forma a veneração desta imagem que, desde muito cedo, fez
rumar a Bouças e, posteriormente, a Matosinhos inúmeros peregrinos fascinados
com a fama crescente dos seus milagres que, desde então, não deixaram de se
multiplicar. Tanto que em 1342 a sua fama já era suficiente para
motivar que gente de outros reinos se deslocasse em peregrinação até
“ao croçessiço de Ssan Salvador de Bouças”.
E se é verdade que a devoção e a celebridade do Bom Jesus de
Matosinhos mergulham muito fundo no tempo, também não deixa de ser
verdade que relativamente à lenda que explica a origem e o aparecimento desta
imagem numa época tão remota, estamos, obviamente, perante... uma lenda.
Muitos argumentos culturais, históricos e arqueológicos, contrários às
recuadas datações propostas pelas narrativas populares e lendárias,
poderiam ser aqui evocados. É no entanto a idade da própria imagem
do Bom Jesus de Matosinhos o argumento mais definitivo já que, de facto, ela
não pode ser tão antiga quanto aponta a tradição. Os cristãos dos primeiros
séculos (supostamente contemporâneos daqueles que recolheram a imagem na praia
de Matosinhos) utilizavam como símbolo da sua Fé e como forma de
clandestinamente se identificarem entre si, o desenho estilizado de um peixe.
Só posteriormente, e de uma forma paulatina, irão adoptar a cruz. Mas foi
apenas a partir do século X que, iconograficamente, a Igreja Católica evolui da
cruz nua para o crucifixo, isto é, para a veneração do corpo de Cristo pregado
sobre a cruz. Assim, a imagem de Matosinhos não deixa de seguir estas linhas
evolutivas e é, obviamente, posterior ao século X. Só que...
Embora a imagem não possua a ancestralidade que a lenda lhe atribui, não
deixa de ser, nas palavras do estudioso Pinto Ferreira, “sem dúvida, uma das
mais impressionantes, mais belas e possivelmente a mais antiga existente em
Portugal”. Este autor, à semelhança de vários outros investigadores, não tem
dúvidas em a colocar entre o grupo das mais antigas existentes em toda a
Península Ibérica datando-a dos finais do século XII ou princípios do XIII.
Deste modo é uma verdadeira relíquia a imagem que podemos contemplar no
interior da igreja de Matosinhos. E é mesmo necessário ir observá-la no
interior do templo pois, ao contrário do que muita gente pensa, a imagem não
sai em procissão na Páscoa nem mesmo nas festas que lhe são dedicadas
anualmente. Passam-se décadas sem que ela venha ao exterior. Serve de exemplo a
actualidade, já que as suas duas últimas e extraordinárias saídas em procissão
datam de 1944 (para em plena 2ª Guerra Mundial implorar pela Paz no Mundo) e
1967 (para assinalar o cinquentenário das aparições de Fátima).
Como chegar
A imagem do Bom Jesus de Matosinhos domina o belíssimo altar-mor da
igreja de Matosinhos. Localizada no centro desta cidade, na ampla e arborizada
Avenida Afonso Henriques, o acesso à igreja está devidamente sinalizado e o
leitor não terá dificuldades de aparcamento uma vez que são vários os parques
de estacionamento contíguos ao santuário.
Embora regra geral a porta principal da igreja esteja aberta é sempre
possível, na eventualidade do visitante a encontrar encerrada, e mediante
pedido de autorização, penetrar no templo através da sacristia.
Se vem de longe ou não quiser correr o risco de uma desagradável
surpresa é aconselhável um contacto prévio para o telefone
22 9380734.
Como ver
Pregada numa monumental cruz de madeira, a imagem do Bom Jesus de Matosinhos
possui cerca de dois metros de altura e toda ela está talhada em madeira,
incluindo os cabelos, barba e panos que cobrem Cristo. Guardada e exposta na
igreja paroquial de Matosinhos, a imagem foi para aí transferida desde que este
templo foi edificado, na segunda metade do século XVI, na sequência da ruína e
fecho da velha igreja de Bouças, que se localizava a algumas centenas de metros
de distância. A nova igreja continuou, no entanto, a ser objecto de sucessivas
e posteriores intervenções, devendo-se salientar as do período barroco, no
século XVIII, nomeadamente o notável revestimento em talha dourada de toda a
capela-mor e a edificação de uma nova fachada, da autoria do famoso arquitecto
italiano Nicolau Nasoni .
E assim para quem, na actualidade, penetra na igreja de
Matosinhos, é difícil acreditar que a imagem seja muito mais antiga do que tudo
o que a envolve. Isto porque a belíssima talha dourada que recobre o altar-mor
(aí colocada em 1733 e hoje considerada uma das obras-primas em talha dourada
do barroco nacional) quase ofusca a imagem que, ainda por cima, foi objecto
nessa época de algumas “intervenções” que, simultaneamente à colocação no altar
de tão imponente e rica talha, procuraram “enriquecer” aquela que passava a ser
uma velha, nua e pobre imagem. Assim, a singularidade da imagem e
muito do seu trabalho original, esculpido directamente na madeira, foi
então obscurecido pela colocação sobre a cabeça da imagem de uma
cabeleira artificial e de uma auréola de prata, cravejada de pedras preciosas,
que ainda hoje não deixam contemplar na globalidade o rosto. Já o “colobium”,
ou pano da pureza, também ele esculpido directamente na madeira da imagem, é
hoje observável. Mas só desde há muito pouco tempo. Porque até há bem poucos
anos também um saiote em seda, bordado a ouro, supostamente “enriquecia” a
imagem, retirando-lhe a sua autenticidade e riqueza original.
Mas, se num primeiro contacto a imagem não nos parece muito antiga, uma
visão mais cuidada e aproximada não nos deixa dúvidas da sua recuada origem.
Desde logo o facto dela se encontrar pregada com quatro cravos, ou seja, com os
dois pés pregados separadamente e não sobrepostos como posteriormente se
tornaria habitual neste tipo de representação. Por outro lado, embora o corpo
do Cristo de Matosinhos descreva uma ligeira curva sinuosa ao nível das pernas,
estamos ainda longe de uma linha pronunciadamente quebrada para dar a
ideia das pernas flectidas pela dor ou pelo peso do corpo. Ora, uma
das características das primeiras imagens de Cristo crucificado é exactamente o
facto de serem representados direitos e hirtos ao longo do madeiro. Neste
contexto é de salientar, no Bom Jesus de Matosinhos, a cabeça, bastante
inclinada para a direita, sem dúvida um dos mais notáveis pormenores desta
imagem.
A antiguidade do Senhor de Matosinhos parece ficar igualmente atestada
por estarmos em presença de um Cristo significativamente “pudico”. O saiote
cobre totalmente uma das pernas, enquanto a outra descobre apenas meio joelho,
para evidenciar as feridas de Jesus. Enfim, uma imagem do tempo “em que toda a
nudez será castigada”, bem distante de Cristos posteriores representados sem
grandes preocupações com a exposição da nudez do corpo.
E, já que contempla a imagem do Bom Jesus, não deixe o visitante de
contemplar as outras imagens que o rodeiam, nomeadamente as dos nossos já
conhecidos Nicodemos e José de Arimateia. E não deixe, seguramente, de se
surpreender com a imponência da talha dourada do altar-mor, recentemente
restaurada.
25.11.2014
Iconografia
– Bom Jesus de Matosinhos *
Em Minas
Gerais a devoção ao Jesus Crucificado e principalmente ao Senhor Bom Jesus de
Matosinhos será introduzida na cultura religiosa mineira em fins do século XVII
e início do século XVIII pelos primeiros desbravadores portugueses que se
instalaram nesta região para exploração de ouro, prata e pedras preciosas.
Vista a
inserção desta imaginária no contexto cultural e religioso mineiro e suas
representações iconográficas apontadas por CUNHA (1993), OLIVEIRA e CAMPOS
(2010), o JESUS CRUCIFICADO pode ser apresentado e representado sob cinco
diferentes iconografias, sendo uma destas a iconografia do JESUS CRUCIFICADO de
Matosinhos.
- Na
primeira iconografia denominada de JESUS CRUCIFICADO ou BONFIM, o Cristo
aparece envolvido na cintura por uma faixa branca denominada “perizonium”,
amarrada por cordas ou nó do próprio tecido. Os braços estão suspensos e presos
à cruz por meio de cravos. Os pés, às vezes, estão separados ou unidos um sobre
o outro por cravos, apoiados ou não em supedâneo. Os olhos fechados.
- Na segunda iconografia
denominada de JESUS CRUCIFICADO (Agonia), o Cristo ainda figura vivo, com o
olhar direcionado para o alto.
- Na terceira iconografia
denominada de JESUS CRUCIFICADO (Clemência), o Cristo da Clemência é
representado com seu olhar direcionado para baixo, ao encontro do devoto.
- Na quarta iconografia
denominada de JESUS CRUCIFICADO (Matosinhos), Cristo figura com os pés
separados, preso à cruz por quatro cravos com angulação em “T”, tendo um olho
semi fechado e outro entreaberto direcionado para baixo (olhar divergente) e o
“perizonium” cobrindo até a metade da perna esquerda.
- A quinta e
última iconografia é representada pelo CRISTO MORTO (Jacente), onde o mesmo é
apresentado ou não por imagem articulada com peruca que são colocados em
esquifes. Os braços do Cristo se dispõem rente ao corpo, a cabeça está
levemente inclinada e mechas de cabelo lhe caem sobre os ombros. As mãos e os
pés mostram os estigmas da crucificação.
*Texto de Thiago Jesus Botelho
Oração Indulgenciada ao Senhor Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas - MG
Ó MEU Senhor Bom Jesus, que estais na Basílica de Congonhas, braços abertos, para acolher com paternal bondade os vossos devotos e derramar sobre todos a plenitude da vossa misericórdia!
Eis-me aqui, aos vossos pés para vos oferecer, como tributo de minhas homenagens de adoração, o mais profundo sentimento pelos meus pecados, que tantas vezes vos ofenderam.
Ó Senhor, infinita é a vossa bondade em ouvir as suplicas daqueles que até de longínquas paragens se dirigem a vós, com fé e confiança. Incomensurável é a vossa compaixão, Senhor!
Animado por tantas provas de ternura paternal, lanço-me aos vossos pés, implorando a graça que desejo... (pausa... cada um indique a graça de que mais necessita ou agradece graça concedida).
E vós, Virgem Santíssima, Mãe de Deus e Mãe dos homens, a quem o Bom Jesus nada recusará por vossa intercessão, alcançai-me esta graça ardentemente vos peço. AMÉM!
Mariana, 21 de maio de 1977.OSCAR, Arcebispo Metropolitano
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